Es.Col.A. de saberes e de contradições

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Luís Chambel

Quando nos debruçamos sobre o processo de uma okupa – independentemente daquilo que é a sua história e o seu impacto na vida dos protagonistas e ao seu redor – o nosso olhar sobre esse processo parte sempre da perspetiva de que a propriedade é um roubo, tal como definiu Proudhon (1), juízo esse que não é partilhado por muitos dos nossos interlocutores, que podem contudo, num caso ou noutro, considerar justificável ou até positivo que se tenha agido para pôr de pé um espaço assim, resgatado à completa inutilidade e, mesmo, à degradação física de materiais que o tempo e o desuso inevitavelmente acarretam.

Saber o que pensam os nossos interlocutores e vizinhos deve merecer-nos algum cuidado? E se sim, esse modo de ler alheio deve tolher os nossos passos? Ou deve orientar melhor a maneira de fazer? É isso que se aborda neste texto, na tentativa de que possa ser útil noutras circunstâncias.

Que lugar se deve deixar à espontaneidade criativa e à liderança na construção de um processo? No caso Es.Col.A. nada seria possível sem o papel central que jogou um coletivo libertário, que embora enquanto grupo, fosse internamente bastante diverso, definiu, e bem, a orientação e liderança da okupa. Não apenas no impulso gerador, mas também na formulação de uma agenda que naturalmente, depois, a assembleia teria sempre de ratificar. O conhecimento de processos de estimulação e de decisão assembleários e a experiência organizativa tiveram aqui um papel central na condução de um processo no qual a direção não tinha um sentido de “comité central”, mas em que sempre se submetia às prerrogativas obtidas por consenso em assembleia ampla e devidamente anunciada.

Um certo saber e engenho que transparece logo no primeiro momento de cristalização da experiência com a sua brilhante denominação Es.Col.A. (e que não se pode copiar mecanicamente, claro).

As condições externas de assentimento a desobediências ao postulado da propriedade privada são mutáveis e produto das ideias emergentes ou das experiências transformadoras.

Em condições de aceitabilidade muito mais favoráveis do que de antemão, após o 25 de abril, conhecem-se experiências de ocupação em que os protagonistas, mesmo assim, numa fase de poderes policiais muito mais diluídos, se reuniram à noite, armados com o que podiam ter à mão, para irem proceder à ocupação pretendida. E, todavia, o vento soprava a favor, naquilo que era o sentimento geral. Mas não havia uma “tradição” revolucionária estabelecida. Por isso o desuso torna mais difícil avançar no que é fraturante. E o uso só por si também não faz de qualquer processo que seja fraturante.

Mas ser fraturante é, por sua vez, um valor em si?

Ocupar um espaço só faz sentido ou porque isso permite viver livremente a nossa vida e os nossos projetos sem amarras, o que vale só por si, ou porque, além de tudo isso, ainda permite pôr de pé um espaço social.

O projeto social libertário, todavia, não é processo afim ao protagonizado pelos católicos ou os comunistas, aqui não há de um lado os protagonistas e do outro os destinatários, social e assistencial são coisas diversas e uma confusão acerca deste aspeto não deve ter lugar entre nós. O espaço deve ser “feito” por todos, em plano decisório horizontal.

Analisar o projeto Es.Col.A. é mais uma vez elucidativo quanto a isto.

Mas é também claro que na ausência de um programa de autodeterminação própria interiorizado, o que é mais fácil é sempre esperar que alguém faça por nós. Por exemplo, quem se disponibiliza para ir reciclar a comida ao mercado? E quem a come?

Também é certo que sem meios próprios de locomoção à distância as soluções podem tornar-se mais difíceis.

E se o espaço é social, deveremos impor o nosso modo de vida ou apenas partilhá-lo, para que possa ser aprendido? Como as escolhas alimentares, por exemplo.

Questão diferente serão as desigualdades ou imposições de género, autodeterminação sexual, ou até de preferência de estatuto social (em escala idêntica ou invertida do modelo dominante). Aqui o combate deve ser implacável, ainda que se deva sempre fundamentar.

E depois, o sítio que se ocupa é sobretudo um espaço de habitação, ou um espaço para o projeto social? No caso de uma escola, quer a funcionalidade que se pretendia reaver, quer o tal olhar dos interlocutores próximos, determinante em grande parte para a aceitação plena do projeto, apontava evidentemente para a exclusão do espaço habitado.

Ainda que nada haja de conflituoso entre o habitar à noite e o formar de dia. Ainda que possam ser aduzidas razões de segurança do espaço para aceitar a habitabilidade.

Mas todas as escolhas têm que ser pesadas nas suas consequências.

A questão do recurso ao dinheiro foi outra das discussões que perpassaram no processo Es.Col.A., que este foi capaz de levar a bom porto, sempre por meio da discussão aberta em assembleia.

Uma das razões que explicam o êxito do projeto Es.Col.A. prende-se com a presença entre os protagonistas da ocupação de uma fração libertária local, enraizada minimamente no bairro. A existência desta fração, acompanhada da memória sensível das pessoas sobre um espaço a que estiveram ligadas, fez meio caminho do interesse gerado à volta desta okupa.

Outra das razões evidentes do êxito alcançado pelo projeto Es.Col.A. repousa no seu cuidado com a comunicação. No fundamental, o projeto Es.Col.A. foi o porta-voz do projeto Es.Col.A. Evidentemente que o seu princípio de não exclusão por razões ideológicas acabou por trazer ao espaço muito “amigos” que não deixariam de faturar o projeto a seu favor, caso o pudessem, num jogo político de afirmação da sua influência, quer junto dos seus observadores do seu próprio partido, quer junto de potenciais eleitores.

Assim, jornalistas, políticos e outros foram também tentando intervir em nome do Es.Col.A., quer por interesses de agenda própria, quer num caso ou noutro muito residual, por solidariedade genuína.

A grande manifestação do 1º de maio não pode ser retirada deste contexto, ela acabou por exprimir não o crescendo da influência libertária sobre as ideias e o modo de vida real das pessoas, alterando, pouco ou muito, o seu quotidiano, mas mais uma ampla “unidade de esquerda” dos opositores à política vigente da Câmara Municipal do Porto, ou até mais expressamente a oposição à pessoa de Rui Rio. Ora, para este “programa”, o Es.Col.A., era mais uma acha para a fogueira, que interessava a variadas forças políticas, sobretudo quando iam ficando cada vez mais próximas as eleições para a autarquia.

A boçal atitude dos poderes municipais face ao projeto facilitou este alargamento do “apoio”. É lógico que com esta política municipal qualquer possibilidade de compromisso era restrita.

A existência de uma associação constituída implicava a aceitação claramente expressa de que este era apenas um meio legal de resistência, e não um método de decisão e direção do processo. Os interlocutores (em delegação do Es.Col.A.) com as autoridades civis tendo sempre que respeitar o mandato da assembleia claramente expresso, sem qualquer poder para além disso. O que aliás foi respeitado sempre, pelo menos nos primeiros contactos formais.

E deveriam estes ter existido? Ou isso foi um erro, pois a única forma aceitável de defender o projeto era o confronto? Mas o confronto, nestas condições sociais de compreensão e disponibilidade para a luta, não era fatalmente, o vazio? O vazio tal como é hoje, mascarado de centro de recursos?

Antecipando já o aproveitamento político do projeto, e rebelando-se contra isso, uma parte dessa fração libertária local acabou por deslizar para a facilidade de “institucionalizar” o espaço como “libertário”.

Marcou-o assim, visualmente e, com isso, criou uma fratura quer junto daqueles que, com uma perspetiva libertária se opuseram a essa forma de institucionalizar uma apropriação, quer junto dos que não estando próximos ideologicamente, se sentiram em espaço alheio e por isso mais se afastaram, ou finalmente aproveitaram o pretexto ótimo para o poder fazer sem má consciência.

E isto ainda que os protagonistas não tivessem uma intenção de proselitismo, mas apenas quisessem afirmar a sua identidade de opositores a todas as formas de aproveitamento político.

A cisão então criada debilitou em muito a força pública do projeto (que só foi, de novo, reforçada, quando a ofensiva policial se afigurou iminente), embora aí tivesse ocorrido uma curiosa situação na qual é preciso refletir.

Vendo afastaram-se os elementos externos ao bairro, contra os quais aliás, também pendia uma resistência surda, porque sendo muito capazes a nível das ideias gerais, não sendo do bairro a sua participação física manual na manutenção do espaço se tornava mais difícil e os desprestigiava em favor de outros (a velha questão de “falar muito mas não fazer nada”, sem um cuidado criterioso na avaliação dos contributos possíveis de cada um), verificou-se uma interiorização maior do espaço enquanto seu por parte de uma fração local de jovens sem identificação libertária anterior (ou posterior).

Nunca como então – talvez porque foi possível, no entretanto, realizar os seus sonhos no espaço, como o ginásio, por exemplo – a participação desses jovens na assembleia foi tão efetiva e real, assumindo o projeto mais profundamente, além de responsabilidades voluntárias na sua defesa.

E isto volta a colocar em cima da mesa a discussão da inutilidade ou não de compromissos, da importância de afirmar um projeto de transformação real do quotidiano das pessoas, através da novidade da partilha trazida às suas vidas.

A questão que se coloca é a de fazer disso uma alavanca para a compreensão do mundo a que se pertence ou deixar-se ficar numa ilha.

Isso implica também a disponibilidade para o diálogo com os contrários, mas sem abdicar da luta para desmontar a organização social dominante, numa resistência que tem que ser inteligente e apropriada a cada caso, sem desfalecimento, permanente, propícia ao fortalecimento de uma corrente que vá alicerçando a insurreição de uma maneira sólida – criando alternativas de vida, que podem passar pelas mais variadas formas, por exemplo publicando um jornal, gerindo em comum um ateneu, organizando jovens, formando uma banda, cultivando um terreno, fazendo BD, apoiando a luta laboral, etc., etc., etc..

LC

(1) “Se eu tivesse de responder à seguinte questão: o que é a escravidão? E a respondesse numa única palavra: é um assassinato, meu pensamento seria logo compreendido. Eu não teria necessidade de um longo discurso para mostrar que o poder de tirar ao homem o pensamento, a vontade, a personalidade é um poder de vida e de morte, e que fazer um homem escravo é assassiná-lo. Por que então a esta outra pergunta: o que é a propriedade? Não posso eu responder da mesma maneira: é um roubo, sem ter a certeza de não ser entendido, embora esta segunda proposição não seja senão a primeira transformada? Eu tento discutir a própria origem de nosso governo e de nossas instituições, a propriedade” (Proudhon, “O que é a Propriedade?”).

Tudo isto é ainda mais entendível em Kropotkin, cujas ideias, contudo, diferem em muito das de Proudhon: “(…) Para que o bem-estar seja uma realidade é necessário que esse imenso capital: cidades, casas, campos, oficinas, vias de comunicação, deixe de ser considerado propriedade privada de que o açambarcador dispõe ao seu bel-prazer. É preciso que tudo isso, obtido com tanto trabalho, se torne propriedade comum” (Kropotkin, “A Conquista do Pão”).

Faz alguma diferença conhecer e concordar na essência com estas ideias? Faz alguma diferença saber que pontos de vista um e outro advogavam, embora distintamente? E porque, no essencial, apesar de tudo, diferiam de Marx?

Adianta isto alguma coisa à compreensão do processo de uma okupa pela nossa parte e pela parte dos nossos interlocutores? Ao caminho que ela vai trilhando?

E não são, sobretudo, ideias de antigamente? Ou melhor, é possível que junto com outras reflexões mais atuais aquelas ajudem a perceber o mundo em que vivemos?

E ainda: é uma inutilidade refletir porque é que os anarquistas recorrem regularmente ao arsenal teórico de Marx, desconhecendo (ou não querendo sequer conhecer) as propostas de teoria económica libertárias na desmontagem dos mecanismos de extorsão, ainda que por vezes contraditórias?

Ainda assim sabemos hoje muito bem aonde nos conduziram as propostas de Marx.

Mas o levantar no ar de uma reflexão já clássica, mecanicamente, não pode tornar-se uma espécie de propaganda ao estilo de guarda vermelho da chamada revolução cultural chinesa, agitando no ar os escritos anarquistas como se fossem as citações de Mao?

E, também por outro lado, a teoria não pode tornar-se uma salvaguarda que preserve de toda a ação?

Quê?