Calais, terra queimada

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Hugo Dos Santos e Pedro Fidalgo

Impossível compreender a situação dos migrantes de Calais sem ter em conta o território. Ao mesmo tempo fronteira, zona industrial empobrecida e campo de experimentação de um Estado Policial, esta cidade do Norte da França está recheada de tensões bem fora do comum.

É bastante revelador que o maior bairro da lata de França se pareça com uma aldeia. A famosa “Jungle” de Calais. Composta de centenas de barracas de madeira e com tendas instaladas ao longo de uma zona classificada Seveso1 com mais de 400 hectares, entalada entre o mar, a zona industrial e uma via de auto-estrada que desemboca no terminal de Ferries que, por sua vez, faz correspondência com Dover, 6000 migrantes sobrevivem organizados esperando uma oportunidade para passar para o Reino Unido.

Numa várzea erodida pelo vento, associações humanitárias e colectivos militantes contribuíram para a criação de um lugar bem estruturado, uma autêntica cidade, mas em cima da lama. A avenida principal, que os migrantes chamaram ironicamente de “Champs-Elysées” está repleta de mercearias e restaurantes afegãos. Também outras ruas consideradas principais têm nomes pintados à mão em placas improvisadas. Quem visita a “Jungle” com certeza não se perde. Há uma escola (com aulas de Inglês e Francês), uma biblioteca (“Jungle Book”), um centro de informação para residentes, uma rádio (“Jungala Radio”), um teatro, enfim, numa grande tenda em cúpula diversas actividades são propostas, e até há discotecas e bares onde se capta facilmente Internet por wireless. Passeando um pouco, podemos observar locais de culto organizados por comunidade (igreja etiópica, mesquita sudanesa, por exemplo). Mas afinal esta “Jungle” não é uma selva? Não. Resumindo, na “Jungle” damo-nos cara a cara com tudo o que se tece num meio urbano normalizado dentro da economia capitalista, mas sem as estruturas do Estado (estradas cimentadas, transportes públicos ou caixas de correio…). Se não fosse esta terra húmida que emporcalha os sapatos e as calças de quem não vem preparado (melhor vir de galochas), a miséria a descoberto dos residentes e o facto de necessitarmos de pelos menos 20 minutos em bicicleta para chegar ao centro da cidade de Calais, podíamos imaginarmo-nos em qualquer outro lugar, pois, neste estranho aglomerado urbano já de si banalizado, toda a gente circula em liberdade noite e dia. Até curiosos e jornalistas se apressam em massa desde há alguns meses para cá, contentes com convites para tomar algo num ou outro salão de chá gerido por afegãos, e acabam mesmo por travar “verdadeiros conhecimentos”, não deixando escapar porém a oportunidade para integrar a “experiência” nas respectivas reportagens. Mas perguntaria um leigo que tem visto muita televisão: Na “Jungle” não há selvagens? Não, não há. A grande descoberta do século: os migrantes são seres humanos como outros quaisquer.

É de ter em conta que os activistas No Border presentes estão cada vez menos inclinados a responder às questões dos jornalistas desde que os mesmos foram acusados de “incitar os migrantes ao motim”. Na Jungle há numerosos activistas e militantes humanitários, sobretudo britânicos. Segundo a associação local Albergue de Migrantes (Auberge des Migrants), a mediatização da sensacional fotografia do pequenino Aylan encontrado sem vida na praia turca contribuiu para a chegada de novos voluntários britânicos. Daí não se achar estranho cruzarmo-nos com estudantes, trabalhadores ou desempregados vindos do outro lado da Mancha para dedicarem fins-de-semana e férias à ajuda humanitária permanente (distribuição de roupa, centro de informação, aulas de alfabetização, etc.).

Salta aos olhos até que ponto a vida pode ferver na Jungle quando observamos o contraste que esta realça com a cidade cemitério que parece ser Calais. Fábricas abandonadas, o centro desertificado, casas e apartamentos desbaratados à venda e grupinhos fascistas que desferem ataques pelo crepúsculo. A cidade do Norte atravessa uma forte crise social. Calais tem 26,2% de desempregados (duas vezes a média na região) e um resultado de 49% da Frente Nacional na eleições regionais de 2015. Como tal, os migrantes são os primeiros e únicos bodes expiatórios da actual situação. Natacha Bouchard, presidente da Câmara, acusa sistematicamente os migrantes pela perda de 40% da actividade comercial que desertou do centro da cidade, afirmando que estes “metem medo aos ingleses”, população fronteiriça na qual se baseou durante muito tempo a economia da região com o turismo e/ou o empreendimento estrangeiro. Ninguém comenta os centros comerciais e hipermercados sem alma construídos na periferia que parecem ser, numa cidade que viu desaparecer a sua indústria têxtil e mineira, o único garante de emprego e fonte de rendimento de famílias que consomem nessas mesmas grandes superfícies. Assim se veem famílias a gritar enraivecidas da janelas das suas casas ao verem manifestantes em apoio aos migrantes grafitarem no muro da empresa alemã LIDL “abaixo todas as fronteiras”, como aconteceu na manifestação do 21 de Janeiro. Parece mesmo haver suficientes razões que justificam que alguns calaisienses possam esbanjar ódio racista, seja por agressões nocturnas organizadas a migrantes, seja por pais de “famílias honestas” que encontramos em manifestações de extrema-direita (“Calaisiens en colère”) ao lado de patrões ligados à Câmara do Comércio e da Indústria portuária da cidade. Manifestações estas onde não é raro ouvir fascistas camuflados com roupas militares gritar que “em breve limparão a Jungle”.

Até hoje, testemunham-se vários processos judiciais relacionados com golpes e ferimentos de migrantes, activistas e intervenientes humanitários, uma grande parte destes em seguida arquivados. Neste ambiente, é preciso não esquecer os 1300 polícias de choque que patrulham dia e noite a cidade e arredores, dando um ar austero e frio que relembra outras épocas mais inflamadas da história da França ocupada. Com estes elementos, podemos perceber porque é que os turistas ingleses evitam tal encantada pasmaceira. Alias, encontrámos muitos ingleses pela cidade, nos cafés e nos bares… Ignoravam estes que havia “migrantes que metem medo” à solta pela cidade? Não, conscientes da situação, voluntariaram-se para os ajudar.

A própria existência e o estatuto da “Jungle” de Calais têm herança numa história movimentada que começou muito antes da abertura do célebre centro de Sangatte. Como indica um artigo datado de 2009 no n.°187 do jornal Courant Alternatif, “esta história começou em 1995, data de chegada dos primeiros ‘refugiados’ de origem polaca. Depois em 1997, com a vinda de cerca de quarenta Romani de origem checa recusados pela Inglaterra. Em auxílio, algumas associações criam o primeiro ‘comité de apoio a refugiados’. Seguem-se então as guerras imperialistas levadas a cabo pelos ocidentais na Jugoslávia, no Afeganistão e no Iraque, que levam milhares de pessoas a partir, muitas delas mergulhando bruscamente em direcção ao Estreito da Mancha. É assim que, em 1998, os bombardeamentos da NATO na Sérvia conduzem jovens kosovares e respectivas famílias até às praias de Calais, seguindo-se milhares de iraquianos e afegãos.” Em 1999 abre o centro de acolhimento de Sangatte, gerido pela Cruz Vermelha. O edifício é um armazém de 27 000m2 pertencente à Eurotunnel e requisitado pelo Estado. Previsto para 800 pessoas no máximo, rapidamente dá abrigo a 1800. Voluntariados sucessivos aparecem para ajudar os migrantes clandestinos, o que faz com que rapidamente o abrigo se saturou, acabando por fechar em 2002. Em três anos, entre 60 000 e 70 000 pessoas transitaram neste centro. Segue-se ainda a ocupação destes edifícios abandonados ou de campos no meio do bosque conhecidos pelo nome de “jungles” – palavra com origem em “dzanghal” que quer dizer floresta em Pashtun1. As autoridades locais tudo fizeram para destruir sistematicamente as tentativas de instalação por parte dos migrantes, política esta que se enquadra numa época em que as emboscadas e a recondução de sem-papéis à fronteira se tornou um orgulho para os sucessivos governos franceses, a começar por Nicolas Sarkozy, ministro da Administração Interna entre 2005 e 2007. Em 2009, o desmantelamento brutal de uma “jungle” onde viviam mais de 700 pessoas é filmada e integrada no filme “Qu’ils reposent en révolte”. de Sylvain George, uma das mais belas testemunhas cinematográficas da passagem temporária dos migrantes em Calais e que permite dar alguma visibilidade ao fenómeno até aí pouco abordado pelos médias. A partir de Setembro de 2014, o número de migrantes na cidade explode exponencialmente. Em Junho de 2015, contamos 3000 e, em Outubro, cerca de 6000 pessoas apertadas neste “campo de várzea” chamado “Jungle”, vindos de diversos lugares: Afeganistão, Irão, Paquistão, Curdistão, Palestina, Somália, Egipto, Kuwait, Sudão, Eritreia e Síria.

Face a uma pressão demográfica que se amplifica, as associações locais e as ONG lançam-se numa racionalização do espaço. Constroem-se infra-estruturas colectivas, furos de água, traz-se material para construir barracas e tendas. Os habitantes organizam-se por comunidades, nomeadamente para a alimentação e questões religiosas. As mulheres e famílias são alojadas à parte. Ao passearmos cruzamo-nos sobretudo com rapazes, muitos deles menores, agarrados aos telemóveis que carregam em tendas equipadas com electricidade, passam o tempo à espera da noite em que tentarão saltar às escondidas para dentro de um camião ou escalar os altos gradeamentos farpados arriscando a vida. Alguns, equipados com fatos de mergulho baratos tentarão atravessar a nado os 34 quilómetros que os separam da costa inglesa. Tudo se encara com um certo sorriso. Sabem distinguir quem os apoia e quem são os inimigos, nós recebemos sorrisos, a polícia recebe insultos. Perguntam alguns, em conversa connosco, se em Portugal é fácil obter passaportes, mas nada sabemos responder, pois nunca fomos estrangeiros em Portugal, e na França somos apenas semi-estrangeiros, que privilégio termos nascido na Eurolândia!

Que podemos nós fazer? Durante bastante tempo, no âmbito da lei Besson, posta em prática desde 2011 pelo ministro da Imigração, acolher um refugiado era punido por lei, dando direito até 5 anos de prisão e 30 000 euros de multa. Só a partir de 2013, uma lei não punindo o acolhimento “desinteressado” e “humanitário” foi possível graças à luta de várias associações. Mas os refugiados não querem ficar em França, mas sim atravessar o Canal da Mancha, têm familiares e amigos do outro lado à espera. E estão dispostos a todos os riscos para alcançarem o objectivo. Mesmo sendo punido por lei tentar passar um refugiado, alguns menos escrupulosos aproveitam este desespero e ousam organizar-se até ao interior da “Jungle”, onde alguns comerciantes estabelecem contacto entre passadores e habitantes. Mas o pior inimigo continua a ser o Estado e as suas instituições rígidas.

A cada tentativa de organização de um lugar vivencial para os migrantes em Calais, o Estado sempre respondeu com expulsões, desmantelamento, repressão e controlo. Ocupados, os campos ao longo da praia ou as “jungles”, o destino é sempre o mesmo: destruição dos habitats (por muito precários que sejam), expulsão dos residentes, encarceramento em centros de detenção e até mesmo confiscação de todo e qualquer material permitindo reocupar ou reconstruir. Em Calais, o Estado Francês sistematizou a técnica da terra queimada. Já em Janeiro deste ano, a polícia tinha evacuado a cassetete e com uma chuvada de gás lacrimogéneo uma extensa parte do terreno à margem da auto-estrada. No dia seguinte, bulldozers esmagaram as tendas e material que não pôde ser salvo a tempo pelos habitantes. Na noite seguinte, granadas da polícia acabaram por pegar fogo aos escombros, gerando o pânico geral. Em Fevereiro, o governo de Manuel Valls anunciou a evacuação de toda a zona no sul da Jungle, zona que continha 80% dos habitantes e a maior parte dos espaços comuns e de convívio (escola, centro de informação, igreja, etc.). Mais uma vez, gás lacrimogéneo, cacetadas, destruição de todo o material, multiplicação do medo e incêndios. Apenas alguns lugares onde as ONG têm intervenção quotidiana e de utilidade colectiva conseguiram ser poupados por uma mobilização da opinião pública dirigida por essas mesmas organizações. É que entretanto, o malandro do Estado, construiu um campo hiper-securizado em pleno centro da “Jungle” e sonha transformá-lo em modelo de vida, como que um laboratório destinado a experimentar o que pode vir a ser generalizado mais tarde. E nada melhor que fazê-lo com quem menos se pode defender, pois as condições de vida são tão míseras e o lugar tão bem velado que poucos migrantes ousarão a aventura. “Desta forma o campo ‘humanitário’ sem água, sem duche, nem cozinha, acabará num gradeamento com câmaras de vigilância e acesso biométrico, chamado ‘container’ e construído por uma sociedade em que o patrão é um antigo membro da Direcção de Informação Militar. Mas a sério que não querem ir viver para estes containers?”, ironizava um militante no site Lundimatin1

Mas nada disto é novo. Calais sempre foi um modelo experimental no tratamento policial das questões sociais, prefigurando em si o modelo da França de amanhã. Se disséssemos que a “Jungle” é ultra-vigiada pela polícia de choque que dia e noite a ronda o acampamento, ou que está cheia de bófia apenas perto dos acessos aos Ferry e no Eurotunnel o mal poderia parecer distante do resto da população local e da sociedade em si, mas infelizmente toda a cidade de Calais está exposta a esta condição. O jornal Courant Alternatif alertava já em 2009 para uma situação digna das mais medonhas descrições da ficção-científica: “O porto, onde a Câmara do Comércio e da Indústria colocou o seu próprio serviço de segurança, está hoje cercado de muros e arames farpados electrificados. Mais ainda, foi equipado com um sistema de alarme, fibras ópticas e câmaras térmicas. Em Coquelles (subúrbio de Calais de onde partem os TGV), a sociedade Eurotunnel instalou 280 câmaras de vigilância para 360 agentes de segurança. […] Uma parte dos controlos fronteiriços está nas mãos de empresas privadas. Cada veículo é examinado com meios materiais militares pertencentes às forças armadas inglesas. Entre scanners verificam o interior dos reboques, detectam batidas de coração e há sondas que calculam emissões respiratórias de CO2 […] Calais oferece um mercado atractivo aos empresários da “segurança”. Está-lhes desta forma consagrado um orçamento de 12 milhões de euros anual. “

Em Calais como em qualquer parte perto da Fortaleza Europa, a luta contra as fronteiras liga-se à industrialização das modalidades de controlo, a uma repressão severa e a uma opinião pouco favorável à presença de populações migrantes no “seu” território. O trabalho do colectivo Calais Solidarity Migrant é um exemplo. Por um lado, fonte primeira de informações, os militantes ancorados no terreno são os animadores da rede transnacional No Border, acompanhando de perto os migrantes da “Jungle” e agindo directamente contra as fronteiras. Aparecem hoje como a mais sólida resistência ao controlo e à repressão dos Estados.

 

1https://lundi.am/